“A sua mudança”
Vi você hoje, sentado no banco do parque, sozinho. Você parecia diferente, não sei de que forma, mas era quase diferente demais. Lembro que você estava sentado com seus fones no ouvido, de braços cruzados. Masculino, é claro, como sempre. Acho que alguém deveria ter ido tirar você dali, alguém que irradia tanta luz e que chama tanto a atenção simplesmente não pode sair na rua assim, sozinho.
Eu não queria ir falar com você, porque na sua imparidade e mistério parece que tinha mais alguma coisa. Seu olhar estava diferente. E se eu me aproximasse, você ia me contar. Se você não contasse, eu ia perguntar. E, na verdade, eu não sei se eu queria saber de fato o que você andava fazendo da vida que te deixava assim, tão mais bonito e instigante. Eu queria muito, mas queria igualmente não me machucar, sabendo que você podia ter encontrado outra pessoa pra escolher filmes na locadora com você. Mas eu esperava, sinceramente, que toda essa mudança que eu via fosse impressão minha, beleza extra que a saudade via, instigação que o sentimento acrescia, mudança só aos meus olhos. Olhos que evitavam os lugares onde você poderia estar há um certo tempo. Você me evitava também, estávamos quites na nossa infantilidade.
A dúvida mata. Quando não é porque decidimos errado é porque demoramos pra decidir. Na fração de segundo a mais que eu demorei pra ir ou não ir falar com você, você me viu. Abriu um sorriso e veio me dar um abraço. Quem sou eu pra recusar? Quem sou eu pra tentar bancar a durona num momento desses? Abracei e sorri de volta. Você me levou pra sentar na grama com você. Antes mesmo de sentar, eu sabia que você ia colocar o livro do lado e ia se espreguiçar de forma preguiçosa, suspirando, na grama. Será que você não ia mudar nunca? Espero que não. Eu gosto muito da sensação de te conhecer até o último fio de cabelo pra ter que enfrentar novas situações com você. Prefiro que você não mude. Prefiro que você continue sendo esse cara que você é, com as mesmas reações, os mesmos sorrisos e os mesmos olhares sarcásticos pra eu continuar tendo essa sensação gostosa de familiaridade, que parece fazer cócegas bem no fundo das minhas entranhas quando converso com você por alguns minutos.
Depois de deitar do seu lado, percebi que você está de perfume novo e deixando a barba crescer. Só tinha um nome para isso: novo amor. Eu tinha certeza disso. E podia ser outra coisa? Doeu bastante perceber. Deu vontade de ir embora. Mas fazia tanto tempo que eu não te via e tanto tempo que não conversava com você, sem ter saída ou desculpa que eu acho que eu queria curtir você mais um pouquinho antes de me retirar para o travesseiro, encontrar meus velhos sentimentos e conversar com eles.
Perguntei o que você andava fazendo. Você sorriu meio evasivo e disse que a vida estava na mesma, que quando não era trabalho era família ou quando muito, era a faculdade também. Não me disse mais nada. Mas eu sabia. Eu queria ouvir de você porque você estava diferente. Mas não queria ouvir anda que me desagradasse. Você sempre me dá essa sensação de dúvida cruel. Você consegue fazer da minha indecisão uma função exponencial e infinita. Perto de você não tenho a minha habitual autoconfiança, minha segurança. Perto de você, eu só sigo o fluxo e vou sendo levada pela sua correnteza. Acho que você é forte demais pra mim. Conhecer você é quase como tomar um porre. Você é o meu porre, de vinho barato. Eu tomaria um porre de você todos os dias, mesmo se fosse pra acordar com dor de cabeça no dia seguinte.
Perguntei se esta vida estava te cansando. Fui pro lado da preocupação com a falta de distração na sua vida pra ver se escapava uma confissão. Você disse que não. Que toda a atribulação e amontoado da cidade grande fizeram até bem pra você. Que você estava muito feliz. Será que você sentia minha falta? Senti que era um erro continuar ali. Você era pra ser meu passado. Passados deveriam estar enterrados, bonitinhos e só deveriam ser desenterrados no dia de finados dos relacionamentos: os dias dos namorados que passamos sozinhos. Só nessa ocasião que deveríamos e podíamos lembrar nossos relacionamentos que não deram certo por uma razão ou outra. Mas nem esse direito você me dava: morava na mesma rua, trabalhava no mesmo prédio. Eu tentava evitar os horários em que podia encontrar você, mas nestes lugares estão sempre impregnados da tua presença, mesmo que você não esteja de fato lá e era uma mão-de-obra tão grande e difícil que eu preferia até encontrar com você às vezes. Mas no fim acabava só coordenando o meu dia inteiro em função de não encontrar você. Era um pouco cruel comigo mesma, porque pensava em você o dia inteiro só pra não te encontrar. Assim não ia dar pra terminar o funeral. Se é que um dia eu tinha começado de fato a enterrar você.
Perguntei se você andava saindo bastante. Era uma forma de saber se estava e com quem. Você disse que não. Que essas coisas de sair e ficar dançando até altas horas já tinham te cansado e que você era mais um bom livro com chocolate quente do que uma festa num sábado à noite agora. Que maduro que você estava. Era até um desperdício pensar que você não tinha uma companhia pra ler o livro com você, como eu costumava fazer. Você estava começando a fazer falta demais pra mim. Acho que me apeguei a você mais do que eu deveria ter me apegado. Mas existe uma medida do quanto devemos nos apegar a alguém? Se existir, eu vou entrar na fila pra comprar o dosador.
Você ainda não tinha me dito o que eu queria ou precisava ouvir. Perguntei se você não se sentia sozinho. Eu quase apelei. Mas foi necessário. Você suspirou e me disse que quase sempre se sentia sozinho sim. Mas que não conseguia encontrar alguém com quem se envolver. E que a fase de se envolver com alguém a cada meia hora já tinha passado. Que você queria era sentimento de verdade. Me perguntei o que é que eu signifi-quei pra você, já que você dizia que queria sentimento de verdade como se fosse ser uma nova página da sua vida. Acho que você leu meus pensamentos, porque logo em seguida, você disse que já tinha tido sentimento de verdade, mas que nem sempre só sentimento era o suficiente. Que se só o amor fosse capaz de manter um casal junto, talvez você estivesse vivendo uma outra realidade hoje. Seu olhar intenso ao me dizer isso me deu um arrepiozinho, pequenino assim do tamanho de um furacão mais ou menos. Desviei o olhar. Por alguma razão não consegui sustentar as conseqüências daquele olhar. Você sorriu, meio sarcástico, sabendo o quanto eu me fecho como uma concha quando essas situações acontecem. Acho que eu também não mudava nunca. Ou talvez você me conhecesse demais.
Mas estava quase conseguindo uma resposta. Talvez você não estivesse com ninguém no fim das contas. Perguntei por que razão você não procurava alguém. Você me olhou e ergueu uma sobrancelha só, como se eu falasse algo absurdo. E eu prossegui, dizendo que alguém como você não demoraria a encontrar um par. Você sorriu sarcasticamente de novo. Disse que o amor não era uma equação: pessoa boa + pessoa boa = casal feliz. Disse que pessoas boas se encontram, mas nem sempre dão certo ou simplesmente nunca se encontram ou demoram pra se encontrar e que essa era a grande mágica da vida. Seguindo a sua lógica, eu descobri que não achava graça nenhuma em esperar você descobrir que eu era o amor da sua vida. Eu já sabia que você era o meu. O que será que faltava pra você notar que o que te falta sou eu? Faltava eu, é claro.
Esse joguinho estava me fazendo mal, fiquei até meio zonza e você notou. Se ofereceu pra ir comigo até a lanchonete, e tomar um café, porque sabia que eu provavelmente não tinha comido. Você se lembrava dos meus detalhes também. Mesmo que isso simplesmente significasse uma boa memória, eu preferi interpretar como uma reconfortante característica pessoal minha que você ainda levava com você. Sorri. E sua presença agora me fazia tão bem que eu decidi aceitar ir até a lanchonete. Naquele momento em que disse sim, eu entendi perfeitamente os alcoólatras. Provavelmente, eles encaram um copo de cerveja da mesma forma que eu encaro um sanduíche na lanchonete com você: algo inofensivo, que é simplesmente incapaz de causar qualquer tipo de dano, e, o pior, que está totalmente sob nosso controle. Esse é o erro. Nós não estamos no controle. Ou, se estamos, perdemos o controle. O fato é que não nos mantemos firmes por muito tempo, nem eu, nem os alcoólatras. Você não me deixa assumir o controle.
Você chega, escolhe a mesa, pede dois capuccinos. Como você sabia que eu queria capuccino? Não é só porque eu sempre bebia capuccino quando namorava você que eu ainda gostava de capuccinos e ia querer tomar um capuccino naquele momento. Claro que eu queria, mas eu fiquei irritada com aquela situação. Você estava me controlando, mandando em mim e eu não gosto dessa sensação. Você perguntou se eu ia querer o salgado de frango ou o de calabresa. Pedi o de queijo pra te provocar. Se você não fosse tão perturbador, eu teria escolhi-do o de frango, como você sugeriu. Mas você nem se manifestou a respeito. Você parecia totalmente imune a mim. E aquilo me entristeceu. Eu queria a chance de mostrar a você o quanto nós ainda tínhamos pra mostrar um ao outro, que as coisas nem sempre são como são, que tudo muda e tudo mais. Mas você tinha criado os anticorpos ao meu sorriso, à minha risada, ao meu cabelo meio bagunçado.
Então você continuou sua teoria sobre o amor. Disse que há casais que, embora perfeitos juntos e apaixonados, não dão certo por ‘n’ razões. - Eu detesto essas suas expressões de exatas. Tem horas que você realmente me irrita. Vai ver que é por isso que é tão difícil deixar você pra trás. Quando nos irritamos é por que nos importamos. Eu me irrito porque eu me importo com você muito mais do que deveria.
Perguntei que tipo de razões poderiam levar um casal perfeito e apaixonado a não dar certo e disse que essa teoria não entrava na minha cabeça e que quem tem que ficar junto, fica junto independentemente de razões externas. A solidez de um casal, pelo menos pra mim, sempre foi mais interna do que externa. O que tem que funcionar é o casal em si e não o casal num âmbito nacional, como você acha. E você riu das minhas expressões, dizendo que esse era um pensamento simplista demais, ingênuo e irreal e que, no fundo, fatores externos também contam muito. E que às vezes são objetivos que uma das pessoas tem e a outra não, algo na personalidade que acaba cansando por não se encaixar no meio social do outro, ou coisas corriqueiras do dia-a-dia, pequenas responsabilidades que ninguém quer assumir, são coisas que fazem com que o relacionamento que poderia dar certo acabe indo por água abaixo. E que tudo o que você queria era não ter esse tipo de dificuldade.
Foi a minha vez de rir de você. Ia me esforçar muito pra não dizer o que eu estava pensando pra você, na lata, com todas as letras. Você era um grandessíssimo covarde, um frouxo. Era isso o que você era. Pessoas que têm esse tipo de pensamento que você tem desistem de uma relação assim que ela começa a ter conflitos. Será que era isso que tinha feito a nossa relação acabar? Fiquei aliviada, porque, se era isso, eu podia culpar você. Era você quem tinha desistido de nós e não eu que não era boa o bastante. E, no fim das contas, alguém assim, tão sem garra e sem força de vontade de lutar por um relacionamento, com toda a certeza estava sozinho por merecimento e não por azar ou fatalidade do destino como você fazia parecer. Saber que você estava livre e desimpedido era até bom, mas eu tinha ficado tão desapontada com a sua fraqueza dissecada na minha frente que até perdeu um pouco do brilho a tal notícia pra mim. Parei de tentar me mostrar diferente e encantadora pra você. No fim, nem sei se você merecia. Meu super-herói acabara de se mostrar uma fraude. Acho que foi exatamente neste momento que começou o seu funeral pra mim. Você era uma farsa. Não tinha nada de corajoso, brilhante ou forte em você. Sempre tinha tido você como uma espécie de cavaleiro medieval, capaz de enfrentar dragões, reis, soldados e exércitos inteiros pelo seu ideal. E, no fim, você era só aquele ser insosso e racional que colocava seu relacionamento numa equação física inexistente de perfeição, em que as coisas dão certo por si só, sem nenhum tipo de esforço. Isso lá era meta pra alguém em domínio pleno das faculdades mentais ter na vida?
Embora eu tenha pensado tudo isso, a única coisa que eu disse pra você que com toda a certeza ia demorar pra você encontrar alguém e que você ia ficar sozinho muito tempo ainda. Você ficou surpreso com a minha mudança repentina de atitude e perguntou o porquê da minha opinião. Eu não queria falar. Se eu começasse, você ia ouvir tanta coisa que ia te magoar e que você não estava pronto pra ouvir, que ia jogar o dinheiro na mesa, fechar a carteira e sair, sem a menor cerimônia ou educação. Você insistiu. Minha determinação não foi tão longe quanto eu queria e eu comecei a falar. Disse que você não tinha força de vontade o bastante nem pra ser um ex-namorado, no sentido temporal da palavra, de passado, de antigo e de esquecido. Que tipo de pessoa ia ter uma reação do tipo que você teve quando me viu com uma ex-namorada? Você me abraçou, conversou comigo, foi amigável, me chamou pra tomar um lanche com você, pediu o capuccino e lembrou de pequenos detalhes pessoais meus e, no fim, quando eu comecei a me perguntar qual era a razão de nossa relação não ter dado certo já que você se sente tão sozinho a ponto de apelar até pra minha companhia, da qual você fugiu tanto tempo, você simplesmente me entrega a resposta numa bandeja. E a resposta era feia. Era uma verdade de você que eu não queria ver. Você era fraco demais pra amar alguém. Você não amava ninguém porque você não sabia amar ninguém. Alguém que foge de conflitos não pode amar. Ninguém merece amar se não quiser se sentir um idiota cabeça-dura, que continua tentando fazer as coisas darem certo mesmo sem ter nenhum motivo justificável além do próprio sentimento. Você não falava, mas o que você realmente pensava é que a pessoa ideal pra você deveria ser como uma pecinha de quebra-cabeça: encaixar perfeitamente em você, sem sobrar espaço nem faltar e que isso era não só pueril como ridículo e impossível. E que, no fim, aquele papo todo hipócrita que eu tinha tido com você o tempo todo, só querendo saber se você estava com alguém ou não, tinha valido a pena porque eu, finalmente, estava começando a tirar você da minha vida e seguir em frente. Se você não conseguia se adequar às pessoas e às situações, azar o seu, que ficasse sozinho. Se você não tinha determinação e jogo de cintura, pena, ia morrer com tentativas frustradas com pessoas frustradas. E eu? Eu ia encontrar alguém. E ia dar tudo certo.
Deixei o dinheiro em cima da mesa – só pré te ofender ainda mais, já que eu sabia que você ia querer pagar a conta – e saí da lanchonete. Eu não queria ouvir você de novo. Estava chovendo torrencialmente agora. E já era fim de tarde. Quando as gotas de chuva começaram a me molhar, eu comecei a me sentir livre, comecei a sentir que o cordão umbilical que me ligava a você estava sendo cortado. Eu ainda amava você. Mas não dependia de você, de forma alguma. Estava livre das perguntas que você colocou na minha cabeça. Nossa história não era mais um mistério e você não era mais perfeito. Éramos todos humanos, sujeitos a errar, mudar de idéia e aprender. Eu esperava, sinceramente, que você revisse os seus conceitos e se tornasse alguém mais forte e corajoso. Era isso que faltava em você, para que pudesse haver um nós: força e coragem, um pouco mais de fibra, determinação. Nunca tinha sido esse o seu forte. Só não imaginava que pudesse ser um ponto tão fraco. Você não é feito de aço, como eu pensava. Você é, no máximo, pintado de prata por fora.
A sensação de me desprender de você foi divina. Acho que foi algo relacionado à chuva. Tem um ditado que diz que Deus está na chuva. Provavelmente é verdade. Pelo menos a sensação é a mesma.
Estava andando livre na chuva de braços abertos, quando alguém, atrás de mim, me puxou pelo braço, virou meu corpo, tirou meus cabelos molhados do rosto e me beijou. Era você, junto com a água. Você me abraçava forte e com uma paixão absurda que mal parecia ser sua. Você finalmente me soltou e me olhou. Tinha algo nos seus olhos agora, algo torrencial, e, quem diria, atrevido, impetuoso e até intempestivo talvez. Não parecia quase nada com você, ou com o você recatado, tímido, pudico e morno com quem eu conversava minutos antes. Você estava muito mais próximo de mim. Quem era você de verdade? O que significava a sua atitude? O que eu ia fazer agora?
Você respondeu tudo tão rápido e tão fácil, de uma forma que eu jamais julguei que seria capaz. Pediu desculpas pelas últimas lágrimas que eu chorei e perguntou se estava atrasado demais pra conseguir me alcançar, se eu já tinha alçado vôo. Você era só um ser humano agora. Você não era mais perfeito. E tudo era muito mais fácil. Eu sorri e te abracei. Era a melhor forma de responder que eu estava pronta agora pra receber você, o você mudado e novo, humano, tocável e atingível. Sua imperfeição era tão tangível, assumida e escancarada que me dava vontade de tentar de novo.
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2 recados:
Céci, no meio de uma academia onde tanta gente julga escritos dos outros, tece teorias e se mete a fazer uns poemas meio tristinhos, você é uma escritora de verdade! Gostei de ver, gosto de ver sempre! Beijos!
Fantástica!
Dificil é encontrar pessoas que escreverm como vc, como seu amigo disse, a maioria das pessoas é bem clichê pra escrever. Adorei, adorei realmente, sem o que dizer... Inteligente sem ser chato e lindo sem ser piegas...
excelente!!!!
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