Irrigando ao Vinho











Naquele sábado, o calor do parque enfrentava bravamente a barreira entre o escaldante e o insuportável. Mas ele estava de calças compridas. Não gostava de suas pernas. Eram demasiadamente brancas e sem pêlos. Nenhum. E eram frias também, meio lagartinosas. Se aquele homem fosse um pecado, seria a cobiça. Assim como um réptil, ele se escorregava lentamente por entre cantos, frestas e sombras, observando as pessoas à sua volta e localizando um alvo, com os olhos precisos como radares potentes. Selecionava cuidadosamente, com uma calma preocupante seus objetos de admiração. E naquele dia, sentado no banco de madeira do parque, devidamente posicionado fora da luz, ele acendeu um cigarro. Tragou forte a fumaça, suspirou, sentiu o calor dentro dos pulmões e, por fim, soltou a fumaça e, no meio da névoa momentânea que criou, começou a observar as belas mulheres passantes.
"Velhas", ele pensou, com um sorriso de desdém. "Em poucos anos, no máximo dois, estarão velhas demais até para serem consideradas como mulheres. Serão, meramente reprodutoras, alguns úteros ambulantes.". É fato que ele já passava dos trinta com folga, mas é fato, também, que sua cobiça doentia almejava meninas de, no máximo, um certo nível de malícia. Mas não se agradava das mais maduras. Era apreciador das jovens e, mais do que isso, das que tinham um ar infantil, que ainda tinham suas atitudes ferrenhamente arraigadas a uma inocência, uma ingenuidade perene. Apreciava-as sim, quase como a um bom vinho. Tinha sido bem criado, fortuna, riqueza, família abastada, abundância. Tão farto de de ter tudo o que podia, começou a se encantar pelo ilícito. Primeiro o álcool. Depois experimentou alguns outros entorpecentes, mas não lhe apetecia a sensação de poder comprá-los e de, por conta deles, perder a potência de seu radar localizador. Buscava acintosamente algo proibido, a transgressão e o rompimento. Manteve, como marca incontestável de sua busca infinita, o cigarro - que, para ele, acrescentava uma pitada de excentricidade à sua persona comum e prosaica - e o vinho, que tomava em qualquer ocasião, mesmo nas que pediam sorvete e refresco.
Depois de fumar seu terceiro cigarro e direcionar seu sarcasmo e amargura a mais uma meia dúzia de mulheres, notou que os irrigadores do parque acabavam de ser acionados. O sol estava a pino, nada mais natural. Acendeu seu quarto cigarro, tragou, fechou os olhos e, quando os abriu de novo, achou. Lá estava seu espécime. "Espécime, não." ele se corrigiu, prontamente. "Diversão. Diversão é melhor."
Era uma garota, devia ter seus dezoito, dezenove anos. Mas brincava sem o menor pudor perto do irrigador. A água jorrava a molhava sua blusa de alcinhas florida e sua bermuda jeans, deixando-os colados ao corpo de forma quase sugestiva. Seria, para muitos, é claro, mais indicativo e tentador se ela não estivesse pulando com alegria tangível para um lado e para o outro do irrigador, buscando satisfazer o mais neutro dos instintos: refrescar-se. Mas não para ele. A pureza com que ela se movimentava, quase dolorosamente infantil, era altamente afrodisíaca. "Que beleza", ele pensou, tragando o cigarro e observando a mocinha por entre a fumaça, que conferia a ela um ar entorpecente e distante, como uma miragem. "Parece ter uns quinze anos." Menos da metade da sua idade. Quase poderia ser sua filha. Arrepiou-se ao pensamento. Aquilo sim era o que um homem precisava para ser feliz. Alongou o pescoço e colocou os óculos escuros, para poder observar com mais liberdade.
Os cabelos morenos e ondulados da pequenina jovem que brincava na frente do senhor reptiliesco pingavam água, suor e o sol, tal como também atraído pelo magnetismo daquela cena, parecia iluminá-la mais, tal como um foco de luz em um artista de jazz no palco. Finalmente, ela se deixou cair na grama molhada, debaixo da água dos irrigadores. Ele não via mais o rosto tranqüilo daquela menina-moça, mas podia sentir que ela sorria.
Sr. Lagarto se preparava para uma aproximação. Jogara fora a bituca do cigarro, tragado até o seu final, guardou os óculos cuidadosamente dentro da bolsa que carregava. Quando tornou a olhar para a direção da Moça, viu um homem do lado dela. Num impulso, retirou mais um cigarro e fumou, sem tanta pompa e elegância premeditada desta vez. Mostrava um pouco mais da ira que lhe absorvia quando alguma de suas diversões priorizava outra companhia masculina.
O agravante era a beleza do rapaz. O Acompanhante da Moça redefinia a noção dos parâmetros de beleza. Era tudo o que o Sr. Lagarto sonhara ser um dia. Alto. Forte. Sorridente. Carismático. Tinha pêlos e a Moça. E era feliz. Transpirava felicidade.
Sr. Lagarto sabia que aquele casal era uma aberração da natureza. Tanta beleza e sintonia geraria e perfeição. Ele, com seu olhar tão perspicaz, sentiu que era hora de agir. O casal acabara de sair de perto dos irrigadores. Aproximou-se. E como sabia ser simpático! Conversava tanto que não parecia remotamente tão estranho quanto era.
Finalmente, ofereceu um pouco vinho aos dois. Descobrira que a Moça tinha, na verdade quase vinte anos. De perto parecia ter quatorze, de tão mínima e resplandescente que era. O Acompanhante, belo e vistoso, chegava quase a ser suculento. E isso mexia no âmago da ira do Sr. Lagarto.
Conforme era dada a expectativa, o Acompanhante aceitou por gentileza enquanto a Moça negou pelo pudor. Depois de duas taças de um vinho que, coincidentemente ou não, dada a habilidade do Sr. Lagarto ou não, ninguém notou que vinha de uma garrafa diferente da qual este último bebia o próprio vinho. "Vinho especial para o Acompanhante da minha diversão". Ele pensou, com um sorriso.
Sr. Lagarto retirou-se humildemente, com um sorriso cordial digno da realeza. Quando estava a quase uma milha dali, começou a ouvir os gritos desesperados da Moça e também a respiração ofegante do Acompanhante. Depois ouviu ainda mais longe a tosse. E por fim, não ouviu mais nada. Sorriu. Colocou os óculos. Chegou em casa, deitou e cochilou o sono dos tranqüilos, sentindo que tinha deixado mais uma Moça disponível para o mundo, livre e presa somente aos pensamentos dele, sem qualquer sombra de um Acompanhante.
"Preciso ir ao parque mais vezes..." ele pensou, antes de cair num sono profundamente sereno.

Eu nunca...

Ele olhava a paisagem anônima de Londres. Era bonito, era um sonho. E era solitário. "Melhor assim", ele pensava. "Bem melhor assim." Há um ano fora do Brasil, ele sabia que teria cometido uma besteira se continuasse por ali vivendo. Mudou-se. Deixou um bilhete de duas linhas comunicando seu amigo e colega de quarto e pegou o primeiro vôo no aeroporto de Cumbica. Chegou em Londres e foi trabalhar. Era qualificado, ainda que brasileiro, e isso fez com que conseguisse um trabalho bom o suficiente pra vida modesta que mantinha. Os ares platônicos ficavam para os sentimentos, não para as regalias. Estava bem agora. Sentou-se em sua cama, respirou fundo, olhou pro teto e viu o vazio. Sentiu o vazio. E queria se livrar dele. Lembrou-se que fazia um ano que não via fotos de ninguém. Nem dela. Max abriu um sorriso amargo, recusando-se mentalmente a pegar o álbum de couro em cima da cômoda, que ele vivia fazendo de conta que não existia. Em troca, pegou seus inseparáveis discos de vinil: "Janis Joplin ou Frank Zappa?". Colocou Janis Joplin, devido á necessidade de ouvir uma voz feminina endoidecida e apaixonada. A velha história da substituição. Nunca é igual, sabemos que não passa nem perto do original. Mas nos impede de lembrar do que dói por alguns instantes.

Janis entoava com grande paixão e empolgação o refrão de "Cry Baby". Max acompanhava com os dedos a melodia, sem tanta empolgação, e tentando devanear, quando ouviu alguém batendo em sua porta. Sentou-se subitamente na cama, assustado. Houve uma insistência na batida, confirmando que a primeira realmente ocorrera. Ele colocou uma camisa xadrez por cima da regata branca, ajeitou os jeans muito folgados no seu corpo mais magro e bagunçou o cabelo cor de âmbar. Não chegou a conferir o resultado da rápida arrumação no banheiro.

- Já vai! - berrou, ainda pálido de susto. Nem se preocupou em arrumar muito seu pequeno espaço. Quem poderia ser? Um carteiro, talvez. Sem vizinhos próximos ou encomenda de qualquer serviço - de comida a TV a cabo - um carteiro era a melhor opção.

Abriu a porta e não sabia dizer se sorrira, se seus olhos lacrimejaram ou se desejava fechar a porta. Sentiu-se empalidecer. Ela. Ali, na frente dele. A pouca estatura, cabelos mais curtos, ondulados, e as habituais blusas floridas, e o cachecol colorido. O nariz estava avermelhado por causa do frio intenso - era novembro - e as pontas dos dedos das mãos estavam brancas, também por causa do frio. Chegou a conclusão de que estava emocionado. A familiaridade de alguém sempre nos toca de forma especial.

- Elisa? - ele perguntou razoavelmente desconcertado e indefinidamente perdido.
- Max! Que bom que você me reconheceu, eu fiquei com medo de ter que começar a explicar quem eu era! - Secretamente ele se perguntou o que o mundo tinha de tão inspirador pra ela abrir aquele sorriso. Externamente, ele sorriu para os próprios pés.
- E como você pretendia fazer isso?
- Revelando os seus segredos mais cabeludos, é claro. Tenho uns dez anos de fofoca pra sair espalhando por aí! - ela riu e ele, também tenso. - Ainda nessa de Janis Joplin?
- Você ainda deve ouvir Chico Buarque.
- Chico é o amor da minha vida. Amores de verdade são para sempre. - É evidente que ele sabia disso. E, claro, mais evidente que ele não comentaria isso, muito menos com ela. - Eu vou ter que conversar com você aqui de fora? Você já foi menos cruel com meus pés! Eles estão congelados!
- Desculpe, entre Lis, entre. - o apelido que ele criara pra ela escapuliu, escorregou feito banana de seus lábios. Ela entrou.
- Uau, veja se isso aqui não é a sua cara...
- Como?
- Discos de vinil, caixas de pizza, garrafas de vinho, máquina de escrever. Ninguém mais moraria neste lugar.
- Eu tenho cara de máquina de escrever, vinho e pizza?
- Você tem cara de quem escreve e não cozinha. Cadê seus óculos?
- Fiz cirurgia logo que vim pra cá, não sou mais míope.
- Interessante. - Silêncio. Ele não sabia como se portar, tamanha sua timidez.
- Quer água? Café?
- Café, por favor.
- Com açúcar?
- Não, sem.
- Sem açúcar? Você? Tem certeza?
- Com açúcar eu fico acordada umas três noites seguidas. Não posso mais tomar café com açúcar.
- Era isso que te transformava em um foguete, no fim das contas?
- Piorou bastante, virei um terremoto da última vez que bebi café com açúcar. - ele riu. Ela se sentou confortavelmente no sofá. Ele trouxe o café.
- Desculpe a bagunça. Eu... - ele passava as mãos pelos cabelos, tenso. E ela estava a cada segundo mais tranqüila.
- Você nunca ligou pra isso, Max. Tudo bem.
- É...
- E você, como está? Que anda fazendo?
- Eu trabalho num jornal, escrevo e reviso coisas pra eles.
- Que legal! Desfrutando o bom de Londres...
- O bom de Londres, na verdade, é poder ver o campeonato inglês.
- Ai, que ótimo! Você vai sempre? Eu queria ter visto o Manchester ontem, mas não deu.
- Quando você chegou?
- Tem uma semana mais ou menos. Você é razoavelmente difícil de encontrar. Parece que se esconde.
- Vai ver eu me escondo. - Elisa olhou para o café, um pouco chateada com a rudeza do amigo. Mas sorriu, em meio a tristeza que a cercava e disse, se levantando:
- Não vou ficar te incomodando, então. Melhor eu partir. Eu só queria saber se você estava bem. E, bom, já vi que está, não é? Sem prolongamentos desnecessários...Entendi perfeitamente o que você quis dizer. Desculpe.
- Não, não! Não foi o que eu quis dizer! Quer dizer, fique!
- Isso foi um erro, me perdoe. - ele teve tempo de segurá-la bem na porta.
- Não foi. Eu senti tanto a sua falta. - Os olhos de ambos marejaram. Há lembranças que, como moscas, ficam rondando nossas cabeças como se nós fôssemos carnes podres. - Eu não te vejo tem um ano. Fique. - ela voltou.
- Fico feliz de ver que você está bem. Por algum tempo temi que você... Bom, não sei o que temi. Achei, de certa forma, que você ia se atrapalhar um pouco sozinho. Você sempre foi tão desligado.
- Eu estou bem. Mesmo que já tenha quase colocado fogo na casa algumas vezes. - eles riram e o ambiente descontraiu um pouco. Pouco, muito pouco. O suficiente pra que ela se sentasse novamente e para que ele conseguisse articular as frases.
- Você saiu tão de repente do Brasil. Eu fiquei tão preocupada com você. Não se despediu de ninguém, exceto do Flávio.
- Seu noivo. - Ele começou a beber vinho. Só com álcool aquela conversa era suportável. Talvez um analgésico forte fosse altamente recomendado.
- Ex - noivo.
- Ah...sinto muito. - era notável que ele não sentia tanto quanto gostaria de sentir. Mas foi o sufiente para que a ingenuidade dela achasse que era totalmente verdadeiro.
- É. Não era pra dar certo.
- Ele achava que sabia quem você era.
- E eu achava que sabia quem ele era.
- Que grande engano.
- Uma tristeza, é verdade.
- Faz quanto tempo isso?
- Cinco meses.
- E você está...?
- Bem, bem, claro.
- Que bom. Seus pais devem ter ficado felizes também. - ela riu alto e ele pegou uma pílula de analgésico tomou. Só pra acalmar alguns músculos. Como o coração, por exemplo.
- Minha mãe nem cancelou a festa.
- Imaginei.
- Você estava certo, eles tinham um certo preconceito com o Flávio.
- Não seja minimalista, Lis. Você é branca, estudada, empregada e judia. Ele era um aspirante a ator negro, desempregado e protestante. Não conheço ainda um lugar do mundo em que isso iria dar certo.
- Não com a minha família.
- Talvez com o seu pai.
- É.
- Se bem que nenhum dos dois realmente gostava muito de mim. E eu sempre fui seu amigo.
- Acho que eles também queriam que eu só tivesse amigos judeus.- ele não percebeu o tom irônico da afirmação dela. E riu.
- Pode ser, pode ser.
- Max?
- Sim?!
- Vamos sair? Pra dar uma volta? Está bonito lá fora, cheio de neve.
- Onde você quer ir?
- A nenhum ponto turístico. Eu já vi todos! Me leve a algum lugar que você achou bonito.
- Tá certo. Só vou pôr meu casaco. - ele colocou e saíram.
Já estava escuro e muito frio.Foram andando, falando sobre frivolidades, como os restaurantes, a comida, a bebida, a esquisitice dos britânicos e como brasileiros são muito amistosos e ficam íntimos rapidamente. Chegaram a uma pracinha de bairro, meio escondidinha.
- Bom, é aqui.
- O que tem de tão especial aqui?
- Olhe para o chão. - onde estava o cimento, havia vários corações, nomes e declarações de amor, desenhados no chão ainda molhado. A praça era coberta por essas declarações, siglas e símbolos representando um sentimento que ligava algum casal.
- Que lindo isso aqui!
- É. Eu lembrei de você quando eu vim aqui pela primeira vez.
- Por quê?
- Sabia que você ia gostar daqui.
- Por quê?
- Tem a sua cara esses lugares escondidos, que pouca gente conhece e com um grande significado.
- Não sabia que isso era minha cara.
- Eu sempre achei que você tinha tudo a ver com significado especial que pouca gente conhece, sabe?
- Não sabia, mas fico feliz de saber. - Silêncio. Ficaram deitados na neve do chão, lado a lado - Max?
- Sim?!
- Sabe de uma coisa?
- De muitas, mas não dessa. - ela riu. Ajeitou os cabelos pra trás e suspirou.
- Eu nunca fui o amor da vida de ninguém.
- Como assim?
- Os homens com quem me relacionei me superam, me substituem e acabam me esquecendo. Eu nunca fui inesquecível para homem nenhum. Nunca tive nenhum homem que me amasse "pra sempre".
- Isso é uma generalização perigosa, você não acha?
- Não, quer dizer...Meu primeiro namorado virou padre. O Flávio nem pode dizer que sofreu, já que em pouco tempo já estava namorando. Nenhum deles me amou pra sempre.
- E eu garanto que o amor eterno de nenhum dos dois te interessaria.
- Você não entendeu. Eu não quero amor eterno. Sabe aquele sentimento platônico, que te permite ter outros relacionamentos, mas não te permite deixar de pensar na possibilidade de um relacionamento com a outra pessoa?
- Sei, sim.
- É isso que eu falo.
- Você não sabe se um deles ainda tem...
- Ai, pára Max. Nenhum deles sente isso.
- Que melancolia!
- Não é melancolia, juro! É uma constatação.
- Você não saberia lidar com isso.
- Como?!
- Você não lida bem com o fato de as pessoas serem apaixonadas por você, neste nível um pouco supremo, eu diria.
- Não lido?
- Não. Você descreveria como uma paixonite, algo passageiro e menor do que realmente é. Isso inibe as pessoas de se expressarem pra você.
- Como você sabe tanta coisa a meu respeito.
- Eu tenho uns quinze anos de prática. Você é algo parecido com uma tese de doutorado pra mim. - ela riu, muito confortável.
- Posso te fazer uma pergunta?
- Pode sim. Claro que pode.
- Por que você...- ela procurou uma palavra à altura do que queria dizer. - fugiu do Brasil?
- Eu não fugi. - ele entendeu a que ela se referia, mas achou um exagero o verbo escolhido.
- Fugiu. Quem viaja sem se despedir, foge. Na minha terra é assim. Mas eu sou só uma menina do interior. Vai ver eu estou ultrapassada.
- Você não é ultrapassada. Você é compreensiva. Pessoas compreensivas nunca ficam ultrapassadas.
- Mas nunca ganhei nenhum prêmio ou reconhecimento por ser compreensiva.
- Prêmio?
- Não se desvencilhe da minha pergunta. - ela cobrou a resposta de forma sutil, e ele suspirou.
- Eu não queria mais ficar lá. - ele disse, evasivo, sem olhar nos olhos.
- E resolveu se isolar aqui?
- É.
- Que bom!
- Que bom?
- É! Não tem nada melhor do que acordar, bater a cabeça na parede e decidir, num impulso, que se quer sair do país e mudar para o exterior sem dar notícias. Queria ter esse tipo de poder, aliviaria bastante grande parte das minhas decisões.
- Por que você está nervosa?
- Você fugiu, se isolou e nem ao menos se despediu de mim. Nunca explicou o que tinha de tão ruim pra largar tudo pra ficar sozinho. Nunca mencionou o que estava tão errado, o que te faltava. Nunca pediu ajuda. Você só desapareceu. Sem deixar notícias. E quando eu questiono a razão, você me responde que não queria mais ficar no Brasil. E fala isso com tanta naturalidade que eu me pergunto qual é a necessidade de tanta preocupação com o seu bem estar se você é tão auto-suficiente. É bom o sufiente pra você?
- Eu...decidi muito rápido.
- Mas foi rápido o bastante pra escrever um bilhete pro meu noivo, que você conhecia há dois anos. E pra sua amiga de infância, nem um mísero "Adeus" em uma folha de bloquinho.
- O que eu deveria ter feito? O que você esperava que eu fizesse?
- Esperava consideração. Esperava menos desleixo da sua parte, menos indiferença.
- Se eu fui tão boçal o que é que você veio fazer aqui?
- Foi um impulso bobo, uma vontade que eu senti de ver você. Uma bobagem, só isso. - ela estava saindo de novo, e ele a conteve.
- Espere aí, mocinha! Eu respondi a sua pergunta. Seja corajosa e responda a minha.
- Você era meu melhor amigo Max. E nem ao menos me disse pra onde ia. Quando ia, quando voltava. Não escreveu, não deixou endereço. Você simplesmente me apagou da sua vida. Eu queria saber o que eu tinha feito de tão ruim. - ela lacrimejou e enxugou as lágrimas antes que caíssem. Ele se sentiu penalizado por aquela situação. E sentiu, também o peso das próprias ações refletidos nos olhos da sua grande amiga, sua irmã, seu referencial feminino durante tanto tempo. Percebeu que seu impulso e sua fuga tinham sido muito menores pra ele, em comparação ao que significara pra ela. Ela fora abandonada sem satisfação, explicação, notícia ou preocupação. Em certos parâmetros, é muito melhor abandonar do que ser abandonado. A carapuça de vilão servia melhor a ele. Por isso, acabou falando antes que pudesse pensar.
- Você não fez nada. Você era a única coisa boa que me prendia ao Brasil. Mas eu não podia ficar.
- Por quê? Por que você foi embora?
- Eu não quero falar sobre isso.
- Eu tenho o direito de saber. É importante pra mim.
- É complicado.
- Mais do que eu estou imaginando? Difícil.
- Eu amo você! É por isso. Simples assim. E eu não ia conseguir ver você se casando. Não ia conseguir bancar o amigo assexuado indo experimentar vestido de noiva, bolo, sapato, escolhendo convite e cor de decoração, sendo sua companhia perfeita. Isso era demais pra mim. Eu duvido que quem haja alguém no mundo que realmente seja altruísta o suficiente para não querer que a felicidade de quem se ama consigo. Duvido mesmo, honestamente. E, se há, meus aplausos, eu sou realmente muito egoísta e preferia ver você feliz ao meu lado. E, infelizmente, não conseguia mais fazer de conta que nada estava acontecendo, que não era importante, que ia passar. Não vai passar, é importante e está acontecendo! Só você não percebia que aquilo estava me matando! Eu vim pra cá e não melhorou! Eu não consigo olhar fotos, não consigo ouvir meus vinis, não consigo escrever contos. Não posso visitar os lugares. Você não me abandona. Semana que vem eu ia tomar o porre do dia do casamento de vocês dois. E viva a aspirina!
- Como você queria que eu soubesse? Você sempre me deu a maior força com o Flávio, com o casamento. Como eu ia saber?
- Da mesma forma que todo mundo, inclusive o bondoso, caridoso e amoroso Flávio, sabia. Sabia e sempre fez de conta que nunca soube, pra te poupar da pesada notícia de ter um amigo apaixonado por você. Ele é mesmo uma graça.
- Eu nunca soube. Ele insinuou algumas vezes, mas eu nunca soube. Nunca tive sequer a mais remota suspeita.
- Considere-se uma gota de óleo no oceano.
- Não fique nervoso comigo, que nada disso justifica suas atitudes.
- Você ia se casar com a toupeira que dividia o apartamento comigo. Você tem noção do porre que eu tomei no dia em que ele me contou que ia te pedir em casamento? E o outro, do dia em que você aceitou? Eu bebia tanto que achei que fosse acabar um alcóolatra! E eu ainda bebo demais pra não sonhar com você, porque você é, de verdade, um verdadeiro inferno, e não deixa meus pensamentos um único dia. Nunca, nos últimos doze anos, pelo menos. Tem horas, minha cara, que é relativamente cansativo amar alguém.
- E daí? Tudo o que você falou até agora foi sobre você! Eu passei pelas coisas mais horríveis, mais decepcionantes depois que você viajou. Desaprovação da minha família. O comportamento deprimente do Flávio. A saudade enorme de você. se saber que você sentia tudo isso teria feito tudo tão mais fácil pra você, tudo poderia ter sido igualmente mais simples pra mim se você tivesse, algum dia, demonstrado pra mim, de forma clara e explícita, como está fazendo agora, os seus sentimentos.
- Ia facilitar o que? Me diz!
- Eu poderia, por exemplo, ter me sentido correspondida, e não ter começado a namorar o Flávio pra fazer ciúmes em você. Poderia não ter aceitado a proposta patética de casamento que ele me fez em plena padaria, por achar que as coisas não iam mudar, por não ter esperanças. Poderia não ter aceitado as condições de bancar a diplomata tentando resolver um confronto entre meu noivo e minha família, sendo que eu nem queria mesmo me casar. Poderia ter gritado na sua orelha que meus pais não te tratavam bem porque sabiam que eu, definitivamente, queria me casar com você, um branquelo peregrino que ia me levar pra ver o mundo e não ia me deixar nunca mais. Era isso que eu poderia ter feito. - ele estava rindo, soltando toda a graça e ironia daquela informação em uma gostosa gargalhada, emocionada e embargada. estava de braços cruzados, rindo muito e muito alto até que se sentou.
- Meu Deus, meu Deus...
- Do que você está rindo?
- Você viu o tamanho da ironia disso? Quer dizer, nós fomos vizinhos durante anos, cursamos a mesma faculdade e tivemos que descobrir toda essa situação em outro país. Definitivamente, acho que nós somos problemáticos. - ela começou a rir também e eles estavam de pé. Ela, então, enrolou uma bola de neve e jogou nele. Por sua vez, Max devolveu, até que, acidentalmente, ela escorregou e caiu em cima dele, derrubando-o.
- Deixa seu pai ver isso aqui.
- Ele me deserda. Depois castra você.
- Não tenho dúvidas disso.
- Talvez não me deserde.
- O que é, indubitavelmente, a parte mais importante. Eu sou um colunista pobre. Tem certeza que a senhorita doutora neurologista deseja isso pra si?
- Acho que sim.
- Sua família vai entrar em depressão.
- Você só não é judeu, será muito melhor recebido.
- Obrigado pela acolhida especial.
- Eu sou viciada em trabalho. Temperamental. Lunática. Tem certeza de que é isso que você quer para você?
- Eu sempre quis saber como seria essa experiência. Por mais que eu tenha sempre tido um ou outro affair, eu nunca deixei de me perguntar se com você não seria diferente, melhor, pior ou, simplesmente, mais adequado.
- Será que eu vou ser o amor da sua vida?
- Espero que sim. Mesmo sem ser correspondido, sempre valeu muito a pena amar alguém como você.
- Por quê?
- Quem mais no mundo ia questionar uma frase romântica dessas? Eu passo a vida toda pensando em coisas bonitas pra dizer pra uma garota que, com toda a certeza, vai questionar cada uma delas. Isso, por si só, já vale a pena. Eu adoro dar explicações. - ela riu e eles continuaram deitados, abraçados na neve. Adormeceram. E sonharam. Depois de descansados foram ser felizes, mundo afora. Deu um certo trabalho, mas, diz a lenda, que eles conseguiram. E moram em algum lugar do mundo, que os acolheu.

Câmera Lenta I - No Jardim


Eu deitei no jardim. Senti a grama verde, olhei o céu azul, as núvens translúcidas brincando de serem multiformes, e as flores coloridas sendo levadas devagarzinho pela brisa. Respirei fundo e pensei em você. Sempre que eu penso em você, tudo de mexe em câmera lenta. Os raios de sol se mexeram mais devagar, iluminando mais tempo; as nuvens deixaram os desenhos mais bonitos mais tempo no céu antes de começarem sua coreografia mística e as rosas pareciam dançar com o vento, vagarosamente, enquanto eu pensava em você de barriga pra cima e costas nas gramas que, pouco a pouco, se transformavam num gostoso tapete, pra eu pensar em você. Os carros na rua não tinham mais pressa e pareciam caminhar, aproveitando o lindo dia que fazia logo ali, fora do veículo. O mundo era uma imensidão de fatos que, por passarem mais devagar, eram maiores, melhores e mais bonitos.

Pensando em você, tudo de mexe em câmera lenta, demora mais pra passar e fica mais bonito.

Pensando em você, tudo fica mais fácil de se ver.

Você pode ser feliz

Você pode ser feliz, minha cara. Me dei conta disso. Você pode, completa e totalmente ser feliz, feliz de enlouquecer a cabeça e encaracolar os cabelos. Mas sei que você não estava mais feliz ao meu lado, no dia em que me deixou. Lembro de ter aberto a porta e ter visto as malas. Sabe que até hoje tenho dificuldades de usar malas com rodinhas? De uma forma ou de outra, elas me lembram o baque daquele dia, em que você me olhava com um fundo de esperança, mas infeliz. Que realidade mais difícil de encarar ali, na minha frente. Quer dizer, minha arrogância e meu orgulho jamais aceitariam minha impotência, e incapacidade de te fazer feliz. E não te fazia. Você não era. Não convencia. Nada encaixava. Tudo era disforme. Algo, com toda a certeza, cheirava mal durante aquela conversa. Pouco continuava brilhando. Um único fio de respeito separava um casal apaixonado da barbárie. Desafiei você. Disse que éramos eternamente dependentes um do outro. Egoísmo, clássico. Claro que não é assim. Eu dependo de você, e sempre acreditei que você também era assim. Egocentrismo, é evidente. Sempre quis e cri que toda a sua felicidade girasse em torno do meu ser, do meu indivíduo. E hoje percebo que você pode ser feliz, sozinha. Vivendo sozinha, lendo sozinha, trabalhando sozinha. Você é independente o suficiente pra ser feliz sozinha. Eu não. Você sim. Sempre foi assim. Não vai mudar. Não defini ainda se isso é bom. Mas é um fato.

Você pode ser feliz, carissima. Naquele dia houve tantas coisas que eu gostaria ou não de ter dito. Gostaria ou não de ter deixado claro pra você. Gostaria ou não de ter impedido. Não sei. Talvez eu devesse ter impedido a sua saída, ter jogado querosene e um fósforo aceso naquelas malas, ter jurado cometer o suicídio. Talvez eu devesse ter impedido que minha própria incapacidade me atingisse. Pensando que você está melhor agora, fico na dúvida de qual deveria ter sido a minha atitude. Tudo isso circula num vício dentro da minha cabeça, dentro de imagens. Eu sempre serei um artista maluco, um cineasta perdido que vê fotos e se esquece que a vida não é quadro a quadro. Nós éramos ótimos, lembra? Eu lembro. Tudo o que eu me lembro de nós dois é relacionado a coisas boas. De ponta a ponta. Quis tanto construir um sentimento negativo a seu respeito que hoje, o que eu sinto por você é, de fato, a coisa mais bonita que existe dentro do meu coração. Algo de nobre, algo de puro, algo de intacto. Algo de perene, de novo e de enobrecedor. Sabe como é?

Você pode ser feliz, minha querida. Eu, talvez. Menos provável. Mas juro que isso não respinga nada de melancolia e nenhuma responsabilidade disso é sua. É tudo meu mesmo, do jeito que eu sempre gostei. De uma forma misteriosa, tudo o que eu tenho cheira a você. E hoje, enquanto eu escrevi tudo isso, por um breve e maravilhoso segundo sentindo o seu cheiro nas canetas, nada foi verdade e você esteve do meu lado de novo. Você sempre me fez muito feliz, muito mais feliz do que tinha sido até então, e eu quero te eximir de mais essa responsabilidade. Você já cumpriu o seu papel comigo. E muito bem cumprido, obrigada.

Você pode ser feliz, bela. Vá, voe, e tome sua parte gloriosa do mundo. Compreendo o quanto deve ser importante pra você. E nada me deixa mais feliz do que saber que você alçou vôo de encontro aos teus sonhos. Seus sonhos e os meus tendiam e tendem a lados diferentes. Por muito tempo quis que você abrisse mão dos teus. Nunca quis abrir mão dos meus. Hoje vamos, os dois, em busca do que nos fará felizes, ainda que em lugares opostos. É difícil ficar longe de você, mas o que é um homem sem sonhos? É um homem nu, bela. Um homem nu. Nós nos vestimos, nos despedimos e, de certa forma, deixando todo o egoísmo de lado, fico bem. Fico feliz. Sei que você está bem vestida e sei que vou costurando minha roupa aos poucos, sem pressa, contornando com a linha a falta que você me faz e que sempre me fará. Mas, veja: eu continuo costurando. Não se culpe.

Você pode ser feliz, belíssima. Eu não vou chegar a acompanhar isso de perto. Mas de uma forma ou de outra, saber que você está feliz me conforta o suficiente pra que eu coloque a cabeça no travesseiro agora e durma. Boa noite.

A barata

Meu amor,

Ontem eu matei uma barata. Eu, uma menina, uma mulher, um ser do sexo feminino, matei uma barata. Com o meu chinelo. E até embrulhei aquele corpo nojento no papel higiênico e joguei fora. Eu sempre morri de nojo de baratas, lembra? E nesse apartamento que eu moro agora, está tendo uma proliferação. Todo dia aparece uma. Mas hoje era a folga do zelador. Era ela ou eu. Venci.

Não sei por que razão eu te conto isso. Mas o fato é que aquilo significou demais pra mim. Eu me senti muito independente e parte de mim se libertou de você. Você sabe o quanto eu odeio baratas, não sabe? Todo mundo sabe. E o sinal da minha independência de viúva foi matar aquela barata. No nosso apartamento aquilo não existia, claro. O nosso apartamento era o paraíso. Mas depois que você se foi, não sei, não dava mais pra continuar lá. O paraíso só feito por Eva e sem Adão parece desconexo, meio fora de lugar; não parece adequado.

Preferi sair de lá, pra conservar na memória aquele lugar onde passamos nosso tempo juntos. Pensei que se não o fizesse, começaria a degradar tudo o que construímos juntos: um lar, um amor, uma história. Preservei tudo o que aquilo representava, guardei numa caixinha.Vivo agora num apartamento pequeno, perto do trabalho, pra ir a pé, já que eu não gosto de dirigir. Todos os dias quando faço a caminhada para o trabalho, eu lembro de você. Há muitos ipês no caminho. Você gostava tanto deles não é? Não há como passar por ali sem pensar em você.

Minha amiga, a psicanalista, disse que eu escolhi propositalmente, pra nunca me permitir esquecer você. E eu sempre questionei se isso era um desejo ou, simplesmente, falta de capacidade. Nunca me vi competente o suficiente pra apagar e ver esmorecer nossa história abruptamente interrompida. Foi pouco, você partiu cedo. Mas pra mim sempre significou tanto que eu não sei o que aconteceria comigo se um dia eu esquecesse de você.

Antes de partir você mencionou ter o desejo de que eu me casasse de novo, que eu era demasiadamente jovem, não tinha nem trinta anos ainda e não poderia ficar atrelada à você pra sempre. Eu nunca considerei essa possibilidade. Contanto isso pra você, agora, acabo de me lembrar que faz dois anos que você se foi daqui uma semana. E que eu faço 30 daqui duas semanas. E, durante todo esse tempo, eu nunca saí, ou sequer flertei com outra pessoa. Nunca reparei em algum homem bonito, interessante. Não quis fazer sexo casual pra abrandar os hormônios. Nada. Senti o peso da solidão, agora. Acho que era por isso que você preferia que eu me envolvesse de novo né? Pra mim, só a solidão é pior do que as baratas.

A saudade de você às vezes aperta muito. É quando eu coloco jazz no rádio e ouço os acordes bem tocados de Coltrane tomando uma cerveja. Tomo duas, às vezes, só pra fazer de conta que há um par e que você tomou comigo. Delírios. Minha mãe sempre me disse que era bom ocupar minha cabeça. Eu nunca ouço ninguém, percebe? Minha amiga me diz pra mudar de casa. Eu não mudo. Minha mãe me diz pra ocupar minha cabeça e parar de ficar indo da casa pro trabalho e vice-versa. Eu não obedeço. Você me disse pra casar de novo, conhecer alguém. Eu mal saio de casa.

Foi então que aconteceu essa episódio da barata. Eu me senti livre e, pasme, quase pronta pra seguir em frente. Me senti forte e capaz de cuidar de mim. Abandonei a minha fragilidade feminina e fiz algo pequeno, sim, mas muito simbólico. Meu amor, estaria eu começando a me desvencilhar de você? Será que isso é um sinal de que, sim, eu posso viver sozinha?

Isso foi difícil. Embora cada dia fique um pouco mais claro pra mim que eu preciso seguir em frente sem você, não consigo colocar muito ímpeto ou empenho nessa decisão. Eu não quero esquecer você. Tenho medo de que, se eu o fizer, você deixe de significar tudo o que significa pra mim. Será que se eu não for mais apaixonada por você, aos poucos, você vai ir desparecendo e minguando na minha vida, até que não exista mais? Eu não iria suportar isso. Não quero me desapaixonar. Não quero deixar de te amar nunca. Quero você do meu lado, ainda que só preso pelo meu sentimento. Quero você na minha memória pra sempre.

Fui dormir, na cama de casal que eu mantive e que eu encho de travesseiros todas as noites, pra fazer de conta que estou abraçando você. Pela primeira vez, me senti meio patética fazendo aquilo. Deixei os travesseiros ali, mas não os abracei. Me pareceu obssessivo, até meio neurótico dormir fazendo de conta que três ou quatro travesseiros são meu marido falecido. E tenho certeza de que contava com o seu apoio nessa atitude. Você seria mais ousado e jogaria os travesseiros para os sem-teto na rua. Ou picotaria os travesseiros e jogaria só as penas conta o vento e gritaria, anunciando a chegada da neve! Que saudade, que saudade enorme me abateu. Dormi, dentre as lágrimas.

Acordei hoje e fui para o trabalho. Passei um batom vermelho. Me maquiei. Entrei na minha sala e foi então que ouvi alguém, às minhas costas, comentando: "Você está diferente. O que aconteceu?" Virei as costas e vi um homem, o editor-chefe. Nunca tinha reparado que ele era bonito. E fiquei surpresa, meu amor, ao perceber que, de fato, ele o era e muito. Uma beleza. Uma simpatia. Uma sensibilidade só. Que doçura de homem.

Respondi com um sorriso e percebi que essa era outra coisa que eu não andava fazendo com freqüência. Notei a surpresa no olhar dele. Meu sorriso estava enferrujado e não sei como não rangeu quando eu o mostrei ao mundo novamente depois de sabe-se lá quanto tempo. E, mais uma vez, ele me perguntou: "O que é que houve? Que sorriso é esse para o mundo, moça?" e eu, pensando nas últimas 48 horas, respondi: "Eu matei uma barata". Ele sabe sobre nós e compreendeu o que eu quis dizer.

Acho que você vai ser a primeira pessoa que eu ouço, meu querido. Pretendo, depois de matar a barata, a me dar mais uma chance rpa ser feliz. Tenho medo ainda de perder você nas minhas memórias, de te esquecer, de você sumir. Mas vai passar. Eu sei que vai. Conto com você, sempre perto de mim. Ao se lado eu nunca tive medo. E sei que você pode me ajudar.

Je t'aime beaucoup, mon amour.