A barata

Meu amor,

Ontem eu matei uma barata. Eu, uma menina, uma mulher, um ser do sexo feminino, matei uma barata. Com o meu chinelo. E até embrulhei aquele corpo nojento no papel higiênico e joguei fora. Eu sempre morri de nojo de baratas, lembra? E nesse apartamento que eu moro agora, está tendo uma proliferação. Todo dia aparece uma. Mas hoje era a folga do zelador. Era ela ou eu. Venci.

Não sei por que razão eu te conto isso. Mas o fato é que aquilo significou demais pra mim. Eu me senti muito independente e parte de mim se libertou de você. Você sabe o quanto eu odeio baratas, não sabe? Todo mundo sabe. E o sinal da minha independência de viúva foi matar aquela barata. No nosso apartamento aquilo não existia, claro. O nosso apartamento era o paraíso. Mas depois que você se foi, não sei, não dava mais pra continuar lá. O paraíso só feito por Eva e sem Adão parece desconexo, meio fora de lugar; não parece adequado.

Preferi sair de lá, pra conservar na memória aquele lugar onde passamos nosso tempo juntos. Pensei que se não o fizesse, começaria a degradar tudo o que construímos juntos: um lar, um amor, uma história. Preservei tudo o que aquilo representava, guardei numa caixinha.Vivo agora num apartamento pequeno, perto do trabalho, pra ir a pé, já que eu não gosto de dirigir. Todos os dias quando faço a caminhada para o trabalho, eu lembro de você. Há muitos ipês no caminho. Você gostava tanto deles não é? Não há como passar por ali sem pensar em você.

Minha amiga, a psicanalista, disse que eu escolhi propositalmente, pra nunca me permitir esquecer você. E eu sempre questionei se isso era um desejo ou, simplesmente, falta de capacidade. Nunca me vi competente o suficiente pra apagar e ver esmorecer nossa história abruptamente interrompida. Foi pouco, você partiu cedo. Mas pra mim sempre significou tanto que eu não sei o que aconteceria comigo se um dia eu esquecesse de você.

Antes de partir você mencionou ter o desejo de que eu me casasse de novo, que eu era demasiadamente jovem, não tinha nem trinta anos ainda e não poderia ficar atrelada à você pra sempre. Eu nunca considerei essa possibilidade. Contanto isso pra você, agora, acabo de me lembrar que faz dois anos que você se foi daqui uma semana. E que eu faço 30 daqui duas semanas. E, durante todo esse tempo, eu nunca saí, ou sequer flertei com outra pessoa. Nunca reparei em algum homem bonito, interessante. Não quis fazer sexo casual pra abrandar os hormônios. Nada. Senti o peso da solidão, agora. Acho que era por isso que você preferia que eu me envolvesse de novo né? Pra mim, só a solidão é pior do que as baratas.

A saudade de você às vezes aperta muito. É quando eu coloco jazz no rádio e ouço os acordes bem tocados de Coltrane tomando uma cerveja. Tomo duas, às vezes, só pra fazer de conta que há um par e que você tomou comigo. Delírios. Minha mãe sempre me disse que era bom ocupar minha cabeça. Eu nunca ouço ninguém, percebe? Minha amiga me diz pra mudar de casa. Eu não mudo. Minha mãe me diz pra ocupar minha cabeça e parar de ficar indo da casa pro trabalho e vice-versa. Eu não obedeço. Você me disse pra casar de novo, conhecer alguém. Eu mal saio de casa.

Foi então que aconteceu essa episódio da barata. Eu me senti livre e, pasme, quase pronta pra seguir em frente. Me senti forte e capaz de cuidar de mim. Abandonei a minha fragilidade feminina e fiz algo pequeno, sim, mas muito simbólico. Meu amor, estaria eu começando a me desvencilhar de você? Será que isso é um sinal de que, sim, eu posso viver sozinha?

Isso foi difícil. Embora cada dia fique um pouco mais claro pra mim que eu preciso seguir em frente sem você, não consigo colocar muito ímpeto ou empenho nessa decisão. Eu não quero esquecer você. Tenho medo de que, se eu o fizer, você deixe de significar tudo o que significa pra mim. Será que se eu não for mais apaixonada por você, aos poucos, você vai ir desparecendo e minguando na minha vida, até que não exista mais? Eu não iria suportar isso. Não quero me desapaixonar. Não quero deixar de te amar nunca. Quero você do meu lado, ainda que só preso pelo meu sentimento. Quero você na minha memória pra sempre.

Fui dormir, na cama de casal que eu mantive e que eu encho de travesseiros todas as noites, pra fazer de conta que estou abraçando você. Pela primeira vez, me senti meio patética fazendo aquilo. Deixei os travesseiros ali, mas não os abracei. Me pareceu obssessivo, até meio neurótico dormir fazendo de conta que três ou quatro travesseiros são meu marido falecido. E tenho certeza de que contava com o seu apoio nessa atitude. Você seria mais ousado e jogaria os travesseiros para os sem-teto na rua. Ou picotaria os travesseiros e jogaria só as penas conta o vento e gritaria, anunciando a chegada da neve! Que saudade, que saudade enorme me abateu. Dormi, dentre as lágrimas.

Acordei hoje e fui para o trabalho. Passei um batom vermelho. Me maquiei. Entrei na minha sala e foi então que ouvi alguém, às minhas costas, comentando: "Você está diferente. O que aconteceu?" Virei as costas e vi um homem, o editor-chefe. Nunca tinha reparado que ele era bonito. E fiquei surpresa, meu amor, ao perceber que, de fato, ele o era e muito. Uma beleza. Uma simpatia. Uma sensibilidade só. Que doçura de homem.

Respondi com um sorriso e percebi que essa era outra coisa que eu não andava fazendo com freqüência. Notei a surpresa no olhar dele. Meu sorriso estava enferrujado e não sei como não rangeu quando eu o mostrei ao mundo novamente depois de sabe-se lá quanto tempo. E, mais uma vez, ele me perguntou: "O que é que houve? Que sorriso é esse para o mundo, moça?" e eu, pensando nas últimas 48 horas, respondi: "Eu matei uma barata". Ele sabe sobre nós e compreendeu o que eu quis dizer.

Acho que você vai ser a primeira pessoa que eu ouço, meu querido. Pretendo, depois de matar a barata, a me dar mais uma chance rpa ser feliz. Tenho medo ainda de perder você nas minhas memórias, de te esquecer, de você sumir. Mas vai passar. Eu sei que vai. Conto com você, sempre perto de mim. Ao se lado eu nunca tive medo. E sei que você pode me ajudar.

Je t'aime beaucoup, mon amour.

4 recados:

Anônimo disse...

lindo texto. essas pequenas vitórias contam muito. bjo.

Vanderley disse...

Este relato sobre a barata é sensacional, gostei muito.
Seus textos aguçaram a minha curiosidade e sempre que possivel estarei lhe visitando.
Parabéns.

Anônimo disse...

Gostaram da Céci Kafkiana, e eu também :-)

Thiago.

Trefilio disse...

Eeee sua linguista do Jihad!! Voce em sua guerra santa em prol da lingüística teve o dom de me arrebanhar pra esse curso, huahahaha.
Adorei seus textos fia.

Beijos do não-jornalista, não-publicitário, não-advogado, não-tecnólogo, não-físico, não-professor, mas bacharel-em-lingüística-em-potencial.

PS.: eu devo estar esquecendo de algum curso que eu já comecei mas, pensando bem, foda-se, hehehehe, os anos estão chegando para mim e minha memória não está das melhores, huahahahaha. Brincadeira